Febre do Sal

Há seis décadas, o deserto de sal de Bonneville Salt Flats é sinônimo de velocidades alucinantes e quebra de recordes. Em 2010, uma equipe brasileira encarou o deserto pela primeira vez...

A única pessoa a esquecer de olhar para a câmera do helicóptero (Bruno Terena)
A única pessoa a esquecer de olhar para a câmera do helicóptero (Bruno Terena)

A coluna de hoje é uma das matérias de “Movido a Gasolina, coletânea das melhores reportagens da minha carreira publicadas em revistas como Road & Track, Car and Driver, Quatro Rodas e The Red Bulletin.

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Sir Edmund Hillary precisava escalar o Everest porque a montanha “estava lá”, e é difícil pensar em uma explicação melhor para a motivação que leva, há mais de um século, centenas de pilotos e preparadores de todo mundo à Meca da quebra de recordes de velocidade em terra: o deserto de Bonneville Salt Flats, em Utah (EUA).

Não se corre em Bonneville por fama, glória ou dinheiro. O deserto de sal de 412 km² é o lar de apaixonados abnegados, que investem seu próprio tempo e dinheiro em busca da resposta para uma única pergunta – “How fast will this thing go?”

A busca para se descobrir o quão rápido se pode chegar começou em 1896, quando a primeira corrida – de charretes! – foi organizada nos Salt Flats. Em 1911 o primeiro carro acelerou em Bonneville, e em 1940 o primeiro recorde de velocidade foi registrado no sal de Utah.

O fanatismo dos que dedicam horas e dólares a construir bólidos para acelerar no retão salgado de 13 km de extensão é tamanho que tem até nome: “Salt Fever”, ou Febre do Sal. O ápice dessa “doença” acontece anualmente em setembro, data do principal evento de quebra de recordes de velocidade no mundo, a Bonneville Speed Week, criada em 1949 para homologar marcas em diversas categorias.

Um único participante da edição original do evento segue acelerando até hoje. Dwayne McKinney resume a motivação dos acometidos pela Febre do Sal: “Em 60 anos correndo aqui não fiquei rico nem famoso, mas escrevi meu nome nos livros de recordes de Bonneville”. Ter direito a utilizar o boné vermelho do 200 mph Club (clube das 200 milhas por hora, ou 320 km/h) ou o ainda mais cobiçado boné azul do 300 mph Club (480km/h) é um privilégio de poucos e o sonho de muitos.

Na versão 2010 do Speed Week, um personagem até exótico na visão dos nativos: o então tricampeão da Stock Car, Cacá Bueno. O piloto da Red Bull Racing não foi a Utah fazer turismo. Na semana seguinte ao evento, seria dele a missão de acelerar um carro da Stock em busca de um novo recorde de velocidade para a categoria, como parte da primeira equipe de competição brasileira na história a ser acometida pela Febre do Sal.

Vista de Camaro-te em Bonneville (Bruno Terena)

A Febre já foi documentada várias vezes pelo cinema. A mais famosa é o excelente filme Desafiando Limites (no original, The World’s Fastest Indian) de 2005, estrelando Anthony Hopkins. O filme narra a história verdadeira de Burt Munro, neozelandês que encarou uma jornada épica de barco da Nova Zelândia aos EUA nos anos 60 para realizar seu sonho de acelerar no sal.

Sem recursos, Munro sequer havia se inscrito oficialmente na Speed Week, mas sua persistência e paixão acabaram persuadindo os organizadores a permitir que ele entrasse na pista com sua Indian, moto que havia modificado durante mais de 20 anos. Munro retornou por oito anos seguidos à Bonneville, e o recorde que estabeleceu em 1967 para motos até 1.000 cilindradas, de 322 km/h, permanece até hoje.

Agora é Cacá quem caminha pelo paddock improvisado sobre o sal de Bonneville, e sua primeira reação ao passar os olhos por alguns dos 561 inscritos (380 carros e 181 motos) na Speed Week 2010 é de incredulidade. Vários carros são construídos de forma totalmente artesanal, como hobby de final de semana. “Queria ver o que acontece se esse parafusinho se desprende a 400 km/h…”, diz o piloto, examinando a suspensão rudimentar de um dos competidores.

Para cada time de fundo-de-quintal, porém, existe uma equipe com estrutura invejável. Entre elas a grande vencedora de 2010, o Team Speed Demon. Liderado por George Poteet, o carro totalmente de fibra de carbono mais parece um caça sem asas e desenvolve 1.045 cavalos em seu motor turbo de quatro cilindros, desenvolvido em parceria com a Mopar, divisão de performance da Chrysler. O orçamento do time é milionário, e o resultado é impressionante: 673,34 km/h, o carro mais veloz da Speed Week 2010. Ainda longe do recorde histórico dos Salt Flats, porém: 1.014 km/h, estabelecidos em 1970 pelo carro-foguete Blue Flame.

“STOCKÃO”

Os vídeos no YouTube são impagáveis. O ano é 1991, mas a visão da estrada Rio-Santos fechada para que um Opalão seis-canecos acelere até seu capô voar, para então ser reparado por mecânicos de bermuda e sem camisa, remete ao que se convencionou chamar de “era romântica” do automobilismo – e dá uma boa medida do quanto o esporte a motor brasileiro se profissionalizou em menos de duas décadas.

Visual mambembe à parte, o resultado é impressionante: naquele ano, Fábio Sotto Mayor estabeleceu o recorde de velocidade para um Stock Car – e, por conseguinte, para um carro de corrida de fabricação nacional – ao atingir a marca de 303,11 km/h.

Dezenove anos e três gerações de carro da Stock depois, chegou a hora de buscar um novo recorde, dessa vez em um cenário mais apropriado… Ainda no Brasil, antes do embarque para Bonneville, poucas modificações são feitas na oficina da Red Bull Racing em Petrópolis (RJ): instalação de uma relação de câmbio mais longa e remoção do limitador de giros do motor, garantindo cerca de 100 cv a mais, para um total superior a 600. Além disso, o #0 de Cacá é calçado com pneus desenvolvidos especialmente para o sal, piso que proporciona menos aderência, mas causa mais arrasto do que o asfalto.

Mesmo assim, o próprio diretor técnico da equipe tem suas dúvidas momentos antes de Cacá encarar o sal. “Bonneville está a quase 2.000 m de altitude, o que de cara já rouba cerca de 20% da potência do motor”, pondera o multicampeão Andreas Mattheis. “Superar os 300 km/h já seria um grande feito”. A homologação dos recordes é feita pela média de duas passagens pela marca de seis milhas do retão demarcado no sal, e as duas passagens têm de ser realizadas em menos de uma hora para serem válidas.

O time Red Bull Racing de Stock Car não é o primeiro time de uma categoria “convencional” do automobilismo a encarar o sal de Bonneville. Em 2006, a então equipe BAR-Honda (depois Honda, depois Brawn, e atual Mercedes) preparou um carro especialmente para quebrar a marca de 400 km/h em um Fórmula 1.

Não foi fácil: na primeira visita do time a Utah, a alta pressão aerodinâmica gerada pelo assoalho do carro impediu o piloto Alan van der Merwe de atingir a marca. Foi preciso um retorno à prancheta e novas modificações para, em julho daquele ano, atingir o que ainda persiste como recorde histórico de velocidade para um carro de F1: 413 km/h.

Sabedores da experiência anterior da BAR-Honda, os engenheiros e mecânicos da RBR vão trabalhando na aerodinâmica do carro #0 assim que descarregam a máquina no deserto do oeste americano. Asas dianteiras e traseiras são ajustadas para a regulagem de arrasto mínimo. A perda de potência na altitude é compensada pelos quase 10 km disponíveis para Cacá embalar e ganhar velocidade. Logo na primeira passagem, o Stock V8 supera 290km/h. Na segunda, os místicos 300 km/h viram história.

Dali em diante, o buraco é mais embaixo: “Acima dos 300km/h, o ‘paredão’ aerodinâmico torna-se imenso. Cada km/h a mais vai ser um sofrimento”, prevê Mattheis.

Improvisações aerodinâmicas como as calotas recortadas de plástico foram cruciais para levar o Stockão acima dos 345 kmh (Bruno Terena)

A dirigibilidade do Stock também preocupa Cacá: “Quando passo dos 300 o ‘Stockão’ começa a sambar, às vezes até três ou quatro metros para cada lado. E o motor também não foi projetado para permanecer acelerando em seu limite máximo por tanto tempo, mais de um minuto até. O stress nos pistões é muito grande”.

Para superar as dificuldades ainda há uma noite toda para trabalhar, e o time não descansa. Até calotas improvisadas recortadas de uma folha de composto plástico são criadas, e só elas melhoraram sozinhas a máxima em quase 7 km/h. Todas as entradas de ar são vedadas com fita adesiva, os retrovisores são retirados, e um airbox (entrada de ar) improvisado é construído na calada da noite para melhorar a respiração do V8.

Na manhã seguinte, de mudança em mudança, as passagens de Cacá vão melhorando: 318,6 km/h… 335,4 km/h…

Finalmente, a última passagem produz a melhor marca: recorde homologado de 345,936 km/h na média de duas passagens pela ponto de cronometragem.

“A felicidade é muito grande”, comemora Cacá ao descer do carro. “Bonneville é um lugar histórico, um templo da velocidade, e ter escrito um pequeno capítulo dessa história como parte da primeira equipe brasileira a encarar o sal vai ser algo do qual vou me orgulhar para sempre em minha carreira”. Os quase 346 km/h atingidos por Cacá são também 1 km/h mais velozes do que outro piloto da Red Bull Racing: o então líder do mundial da Fórmula 1, Mark Webber, registrou 345,0 km/h como máxima no GP da Itália de 2010 em Monza, o circuito mais veloz da F1. Ou seja: em Bonneville, nem Webber e seu F1 superariam Cacá.

P.S.: Entre as temporadas de 2007 e 2010, estive em todas as etapas da Stock Car como assessor de imprensa da equipe Red Bull Racing, observando de perto o trabalho dos pilotos Cacá Bueno e Daniel Serra e de todo o time comandado por Andreas Mattheis. Assessoria pode ser uma tarefa maçante, mas o período coincidiu com uma era de ouro da Stock e da própria Red Bull no Brasil para jamais comportar um momento de tédio.

As verbas eram generosas e a cada ano havia novos projetos ambiciosos e desafiadores; o recorde de Bonneville foi o maior deles, mas ainda assim apenas um entre muitos.

Em 2007 e 2008, acumulei a função de coordenador do projeto da revista Red Bulletin – Um Jornal de Stock Car Quase Independente, que circulou no paddock da Stock naquelas duas temporadas e marcou época. O jornal era “quente” no jargão do jornalismo, sendo rodado em gráficas locais próximas aos autódromos na madrugada de sábado para domingo, e trazendo boa parte do conteúdo produzida na própria pista na sexta e no sábado, inclusive com o grid de largada definido na véspera.

Era uma correria insana, mais fácil de produzir nas etapas de São Paulo ou Curitiba, nem tão fácil assim em praças como Campo Grande ou Londrina. Mesmo assim, invariavelmente o Bulletin estava lá na entrada do autódromo no domingo cedinho, sendo disputado a tapas por todos que chegavam para trabalhar no circo da Stock a partir das 7h da manhã. Até hoje sou abordado por pessoas que se orgulham de ter guardado coleções completas da irreverente (e muitas vezes polêmica) revistinha.

Foi pelo Bulletin que escrevi a única matéria da minha vida 100% apurada, fotografada, redigida e publicada dentro de uma fantasia de gorila. Mas essa história deixo por ora para um possível Movido a Gasolina 2…

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