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Coluna do Tio Edu

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Tretas com engenheiros

Fui forjado como jornalista automotivo em outros carnavais. Lembro-me que era comum ficar estudando curva de torque do motor de um carro, cruzando com as suas relações de câmbio e diferencial, mais o peso (massa) da carroceria, ...

9 min de leitura

Fui forjado como jornalista automotivo em outros carnavais. Lembro-me que era comum ficar estudando curva de torque do motor de um carro, cruzando com as suas relações de câmbio e diferencial, mais o peso (massa) da carroceria, para elucidar o porquê que o carro xis retomava melhor a velocidade do que o carro ípsilon. Coisas de engenheiros.

Sei lá, talvez o fato de o mercado ser muito mais enxuto, a necessidade que o consumidor tinha de informações era bem direcionada ao lado técnico. E eu ingressei nesse mundo com esse propósito: contar as novidades, explicar como funciona, interpretar resultados, narrar minhas impressões e recomendar compras, respeitando as preferências particulares de cada um.

Por exemplo. Nos anos 80, quem comprava o VW Santana sabia que levava pra casa um carro com temperamento mais esportivo, com torque em baixa e suspensão mais firme. E quem adquiria o Chevrolet Monza era porque preferia melhor acabamento e conforto ao rodar, tanto nas relações mais longas decâmbio como na suspensão mais macia. Por fim, quem comprava Ford Del Rey… bom, era porque… éééeé… Era porque estava distraído mesmo.

Ford Del Rey Ghia [divulgação]
Ford Del Rey Ghia [divulgação]

(Desculpe pela piada. Não resisti.)

Por mais que nunca tenha tido formação técnica acadêmica, as leituras sobre “mecânica de automóveis”, fosse em revistas, livros ou enciclopédias, deram-me algum know-how. Não sei projetar e nem construir nada, tal qual um engenheiro. Mas entendo como tudo funciona e, principalmente, se é o resultado no uso é bom ou ruim. 

O patrulhamento das fabricantes

Quando as redes sociais e a internet não existiam, as fábricas de carros ficavam muito atentas a tudo o que era publicado na imprensa automotiva. Havia meia dúzia de revistas especializadas e os cadernos automotivos dos jornais. E só. Quem queria saber sobre carro ou optar por uma compra, só tinha essas fontes para se informar. 

carros
Chevrolet Monza [divulgação]

Em razão disso, tive vários embates com engenheiros. Bastava que eu fosse mais crítico com algum produto que, pimba, lá vinha o assessor de imprensa da marca, com um engenheiro a tiracolo, pra rebater o teor dos meus textos. Nesse repetitivo jogo de xadrez, os caras vinham com o CREA e eu respondia com a minha bunda. 

Urge esclarecer: por mais que eu não pertença ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), que reúne os engenheiros, eu utilizava uma bunda bem calibrada. E tinha percepção aguçada para avaliar movimentos, ruídos, comportamentose reações de um carro. Os engenheirosvinham “grandões” para debater, abusando do “engenheirês”. Eu apenas respondia. “Tá bom, só que a suspensão do seu carro é uma bosta”. Ou “OK. Mas o [concorrente] é melhor.”

BMW Série 3
BMW Série 3 [divulgação]

(Sou detalhista com esse tipo de percepção. Dia desses, eu tentava mostrar ao mecânico do meu carro que havia um barulhinho esquisito na traseira do carro. Era um “tum-tum-tum” bem suave. O mecânico não achou. Insisti. Pus o carro no elevador e comecei a checagem visual. E achei. O cabo do freio de estacionamento, originalmente afixado no túnel central por presilhas, havia perdido uma delas e criou uma barriga. Resultado: em algumas situações, ele esfregava no cardã e criava o tal do tum-tum-tum.)

Os desentendimentos

Em um desses embates, eu estava jantando durante o lançamento da Ford Ranger, quando um engenheiro da marca, já calibrado por várias caipirinhas, resolve ter a indelicadeza de questionar minha lisura profissional, usando como exemplo um comparativo que eu acabara de publicar na capa da Motor Show, entre VW Saveiro e Ford Courier.

VW Saveiro Robust [Auto+/Leo Alves]
VW Saveiro Robust [Auto+/Leo Alves]

Parou ao lado da mesa, dedo em riste. “Você disse que a suspensão traseira da Courier era de carroça!” Qual seria a forma de descrever um eixo rígido com molas semielípticas? Carroça, ué. “Você também disse que esse tipo de suspensão só era robusta, mas eu tenho aqui alguns cálculos baseados em ensaios dinâmicos que mostram…” Pedi para ele nem perder tempo. Não estava interessado em ser convencido do “inconvencível”. Ele: “eu te desafio pra um racha num autódromo!”

(Aliás… tem picape que ainda usa. Olho nelas.)

Sentado, calmamente, respondi. “Tá aceito. Prometo que vou guiar com uma mão só e nem vou engatar a quinta”. Baixei a cabeça e dei nova garfada no bife. Eu não tinha propósito para defender a Volks. Só que o eixo de torção sempre foi, é ou será mais eficiente que o rígido em se tratando de performance. Entendo que o cara tenha ficado bravo pela denominação pejorativa que dei. Mas que a suspensão da Saveiro era melhor, isso não se discute. 

Em outra situação, desta vez lá dentro da ala 17 da Volks (onde fica a Engenharia), eu reencontrei o chefe da área de motores, que conhecia desde que havia sido estagiário da Autolatina, em 1989. Anos antes, a Quatro Rodas havia publicado um teste do Gol com motor AE (antigo CHT da Ford). O cara tinha boa memória e era vingativo.

“Avisa para o teu chefe que eu abri uma cova com o nome dele aqui no jardim da 17 no dia em que saiu aquele lixo de matéria”, disse o engenheirão. O título da reportagem era: “Mudou e piorou”, feita pelo Bartô (Luiz Bartolomais Jr). Dei risada. E não perdi a chance de provocá-lo – para dizer a verdade, eu era bem folgado mesmo, ainda mais quando estava convicto. “Geraldo, o Bartô estava certo. Piorou mesmo. O AP é melhor em tudo”. Ele só rebateu. “Posso abrir uma segunda cova”. Virou jogo de truco, né doutor?

Rock

“Então abre a terceira só para desovar as milhares de varetas empenadas que devem estar chegando da rede de concessionários”. (Como o motor AE/CHT tinha comando de válvulas lateral, no bloco, a transmissão do comando para os balancins era feita por varetas. Se você operasse seguidamente o motor em rotações altas, elevando muito a temperatura, ou se houvesse folgas no ponto de acionamento dos balancins, adivinhe… elas podiam se soltar ou empenar.)

Outro episódio, de volta ao período de Motor Show, foi no lançamento do Peugeot 206, ainda importado. Fiz o texto do carro, a primeira reportagem. E percebi que a suspensão estava mal calibrada. Ele rolava muito e dava trancos ríspidos quando passava por ondulações. Escrevi no artigo: “as molas não conversam com os amortecedores. Enquanto elas são moles, aumentando o rolling e prejudicando estabilidade, a carga na extensão dos amortecedores é alta, dando um golpe duro na carroceria”. Percebi isso contornando curvas de entrada de pontes, nas Marginais aqui de São Paulo. Eu entrava rápido e sentia a carroceria rolar. Só que, nas emendas de asfalto, a resposta dos amortecedores era praticamente um coice. 

Peugeot 206 [divulgação]
Peugeot 206 [divulgação]

Deu rolo. O carro era bem bonitinho, tinha design bem moderno pra época. A Peugeot achou que ia bombar e ter aprovação unânime nas avaliações. Na Motor Show, não teve. Foi assessor de imprensa e engenheiro na redação da revista. E eu só respondia. “Quer dar uma volta comigo na rua? Eu tô com um Corsa de teste. Te mostro como é uma suspensão bem calibrada para o Brasil”. Anos depois, quando o 206 foi nacionalizado, o chefe da Engenharia da Peugeot chamou o Douglas Mendonça, também da Motor Show, e confessou durante o evento de lançamento: “recalibramos os amortecedores”.

Eles conhecem o produto deles. Eu, a concorrência

Minha maior vantagem sobre os engenheirosera o fato de que eu conhecia (bem) todos os concorrentes para poder decretar quem era melhor ou pior. A comparação é tão vital que as fábricas de automóveis até fazem clínicas com os rivais às vésperas de lançamentos. Alguém consegue os competidores emprestados, ou eles são alugados, e monta um roteiro de 200 km ou 300 km, sei lá, onde os funcionários da marca vão rodando e trocando de carro a cada 50 km ou 60 km. Todos guiam todos. Depois eles dão notas e as comparam com o seu próprio produto. Só há dois problemas: isso geralmente envolve executivos da diretoria, que não sabem a diferença de pneu e carburador. E quem vai criticar pra valer o seu próprio produto?

História real: anos atrás, uma fábrica só fazia a liberação do primeiro veículo a ser cedido para a imprensa para testes depois da auditoria de qualidade feita pelo presidente. Ele olhava junção de chapas, via pontos de solda, avaliava desempenho, qualidade do acabamento. Se ele era formado em Engenharia? Na mesma faculdade que eu.


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4 comentários em “Tretas com engenheiros”

  1. Bruno leandro

    Que texto magnífico. Eu como apaixonado por carros tenho a mesma impressão dos carros. Pra mim tenho sensor na bunda, qualquer movimento a mais percebo imediatamente! Showwww

  2. Marcos Salles

    Excelente matéria, Eduardo!
    Me lembra os tempos de BCWS, com ótimas matérias enriquecidas com boas doses de análise técnica.
    Foi uma verdadeira escola para mim.

    Por favor, nos presenteie com mais conteúdos como esse.

  3. Marcos Salles

    João, você e o Eduardo no cinco coisas, seria surreal.
    #ficaadica. 😁

  4. Luciano Ferreira

    Excelente material precisamos mais reportagem desse tipo.Se hj tivesse alguém com essa coragem de falar a verdade sobre veículos teria poucas marcas de veículos no Brasil conseguindo realizar vendas

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Assuntos

Edu Pincigher

Eduardo Pincigher é jornalista formado pela PUC-SP e atua no setor automotivo desde 1989, sendo o autor da Coluna do Tio Edu com textos divertidos sobre o presente e passado do setor automotivo. Com passagens em diversas publicações e montadoras, hoje trabalha como assessor de imprensa e consultor de diversas empresas

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