A coluna de hoje é uma das matérias de “Movido a Gasolina, coletânea das melhores reportagens da minha carreira publicadas em revistas como Road & Track, Car and Driver, Quatro Rodas e The Red Bulletin.
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Um Geely chinês modelo 2008, um Hyundai Accent dos anos 90, um Lada da década de 70 e um Oldsmobile 1958, estacionados lado-a-lado no centro da cidade. Seria uma cena em uma capital de um Tigre Asiático ou em alguma potência regada a petrodólares no Oriente Médio?
Não: ironicamente, 50 anos de comunismo e embargo econômico em Cuba transformaram Havana, mais por necessidade do que por escolha, em uma das capitais mundiais da diversidade automotiva.
Dividem as ruas de La Habana “banheiras” americanas pré-revolução comunista de 59, traquitanas saídas do leste europeu nas décadas de 60, 70 e 80 – o Lada 2160, conhecido como Laika no Brasil, e o Moskvich são os modelos mais comuns – carros coreanos e europeus dos anos 90, frutos do início da abertura para o turismo internacional, e, cada vez mais nos tempos atuais, modelos chineses de marcas pouco conhecidas do público brasileiro, como Geely e BYD.
Destes, os mais chamativos são sem dúvidas os “almendrones”, nome dado pelos cubanos aos carrões ianques da época do ditador Fulgencio Batista. O nome significa literalmente “amêndoas gigantes”, apelido criado pelos locais devido às linhas arredondadas dos carros. Para o turista com gasolina nas veias (ou para um jornalista automotivo em férias na ilha), a reação é inevitável: é possível dirigir um?
A resposta é simples: “sim”, e “não”. Apesar de existirem algumas poucas unidades nas mãos de particulares, distinguíveis pela chapa amarela, a maior parte é de propriedade del Gobierno, através de uma empresa estatal chamada Cubatáxi. E os motoristas da Cubatáxi não podem, em hipótese alguma, passar o volante a outrem – em tese.
Uma boa conversa e a dose certa de CUCs (o “Peso Convertible”, moeda paralela criada pelo governo para atender os turistas e que, em uma alfinetada clara a los enemigos imperialistas, vale mais que o dólar) convencem o Cubataxista a liberar o volante da “barca” para uma voltinha no quarteirão. Não esqueça de acender o charuto Cohiba, por supuesto.
Antes de você se empolgar com a perspectiva, contudo, saiba que por baixo das carrocerias evocativas aos Anos Dourados do Automóvel escondem-se características bem mais proletárias. Ao longo dos anos 70 e 80, a falta de peças originais causada pelo embargo econômico imposto pelos EUA à ilha foi forçando os locais a adaptarem os carrões à mecânica Lada – “adaptar” mesmo, com direito a substituição completa do trem de força (motor e câmbio) e suspensão.
Como nada é fácil na vida dos cubanos, veio a década de 90 e foi a vez então do Muro de Berlim cair, estreitando o fluxo de peças soviéticas e obrigando os locais a novas improvisações. Atualmente, em tempos mais economicamente arejados na ilha, motores diesel de quatro cilindros são a escolha da maioria – Toyota, Peugeot e Isuzu são as marcas mais populares. Outras peças como amortecedores e demais periféricos também são adaptadas de comerciais leves, na maioria de origem japonesa.
Dirigir um Almendrón é uma experiência mais náutica do que automotiva. Contando com apenas 80 cv no motor Toyota 2.4 a diesel para empurrar suas mais de duas toneladas e meia, o Oldsmobile 1952 conversível que dirijo responde a passos paquidérmicos. A caixa automática de quatro marchas também é Made in Japan, sem nada em comum com a original. De qualquer forma, as ruas esburacadas de Havana e o olhar apreensivo do motorista Osvaldo Fidalgo, que sabe nas profundezas de sua consciência que jamais deveria ter me cedido o volante, fazem com que a velocidade de conforto realmente fique abaixo dos 40 km/h.
Depois do Olds é a vez de empregar CUCs e um bom xaveco para assumir o comando do Chevrolet 1952 de Jesus Pastoriza, que revela a preferência nacional: “Acá se prefere el Chevy. Es lo más fuerte”. Mas de Chevy o almendrón de Jesus só tem mesmo a casca – o motor Isuzu é ano 2002, com caixa manual de quatro marchas e 200 mil km rodados. Como a vasta maioria, o carro de Pastoriza não possui cinto de segurança, já que a legislação os exigindo nos EUA só entraria em vigor décadas depois.
Para quem faz questão de máquinas originais, há também uma opção entre os entusiastas locais. O Club Nacional de Autos Antiguos reúne-se aos sábados à tarde ao lado do Hotel Nacional, o mais famoso de Havana. Ali, só têm espaço os carros de particulares tratados a pão-de-ló, como em qualquer clube de antigos no ocidente capitalista.
Mais interessante que guiar uma dessas preciosidades, todavia, é observar sua variedade nas ruas da capital cubana. De raridades como a perua Chevy Nomad a marcas já há muito extintas como DeSoto e Plymouth, o ápice da indústria automobilística norte-americana parece estar 100% representado nas ruas de Havana, como se o tempo houvesse parado. A criatividade e engenhosidade cubanas garantiram que, mesmo após cinco décadas de embargo – os últimos carros americanos 0km entraram no país em 1960 – mais de 70 mil almendrones sigam rodando por todo o país. Um número bastante significativo para uma nação de 11 milhões de almas.
Gostou da ideia de guiar um? Corra. Afinal, Fidel já se foi, e Raúl não é exatamente um garoto…